Travessia do Guaricana, Ferreiro, Ferraria e Taipabuçu
A distribuição das montanhas na Serra do Ibitiraquire permite travessias e circuitos para quase todos os níveis de preparo. As mais conhecidas são provavelmente a Bolinha-Marco 22, saindo da chácara que dá acesso ao Camapuã-Tucum, sendo uma opção ir "por cima" passando por esses cumes, ou diretamente ao Pico Ciririca/Siririca, com destino á estrada da Graciosa. Outro, é a travessia das fazendas, ligando-a com as áreas que dão acesso principal ao Parque Estadual Pico Paraná, tradicionalmente passando pelo Getúlio, Itapiroca, Cerro Verde, Tucum e Camapuã. Também existe a travessia Lírio do Vale - Rio das Pedras, fazendo o Ferraria Face leste e o Ferreiro, ou pelo Taipa, existe a travessia completa de todos os cumes da serra que provavelmente já foi realizada, as míticas ascensões do PP e do Ciririca pela face leste, enfim, há diversas rotas e combinações que podem ser feitas. Sobrando cada vez menos cumes á visitar no setor principal da serra, resolvi tirar os cumes do Guaricana, Ferreiro e Ferraria de uma só vez da lista, feito cada vez mais comum. Domingo típico de montanhismo na temporada, prometendo um céu limpo e temperaturas próximas á zero nas primeiras horas do dia. Sair do carro era feito quase a contra gosto. A porteira que dá acesso á Picada do Cristóvão aos fundos da Fazenda Rio das Pedras estava aberta, e logo nos primeiros metros, confiando na luz da lua, quase morro do coração ao bater de frente com um ser que á princípio não identifiquei no chão á minha frente e que também se assustou com minha presença, e que passou á ficar cada vez maior, mas que não passava de um cavalo que teve o fim da noite de sono interrompida por três montanhistas. O começo ainda noturno da trilha não permitiu que meus colegas vissem o quão bonito aquele trajeto era, por mais que seja fruto de intervenção humana. Pouco adiante do ponto onde há o avistamento do Morro Taurepã e do Guaricana, acabamos cometendo um erro bastante frequente e que na minha outra visita acabou não me ocorrendo, que foi seguir o caminho adiante, ao invés de pegar uma entrada á direita, que vai quase para a direção oposta. Alguns tracklogs mostram que alguns demoram ainda mais para perceberem o engano. Atravessa-se dois córregos e em certo ponto, antes ou depois do segundo, toma-se um caminho á direita novamente. Dali em diante é a Picada do Cristóvão em si. O caminho é bem aberto e de leve aclive, não o suficiente para obrigar uma parada até o ponto de bifurcação entre o Guaricana e o Ferreiro. Chegando lá, é hora de tirar algumas blusas e deixar uma garrafa de água com melhor acesso. Em tracklogs com mais de 2 anos, ficava claro que o Guaricana possuía uma trilha pouco consolidada, também evidenciado pelo seu caderno de cume, ainda o primeiro á ser deixado lá em 2002, e citando sua primeira ascensão registrada como sendo de 1997. Mas hoje, dá para se dizer que a trilha está relativamente tranquila em questão de identificação, bem fitada e com quase nenhum trecho que gere dúvidas, embora como sempre, o uso de um tracklog, com certa pitada de experiência, seja indispensável por segurança. A trilha após a plaquinha inicia-se com um grau de aclive bem tolerável, que passa á mesclar com alguns trechos de breve caminhada, e com alguns obstáculos que geralmente são árvores caídas. Chega-se próximo á um rio onde surge uma bifurcação que induz ao erro, mas que sua direção correta á esquerda está fitada. Mais adiante, a trilha passa á ser cada vez mais íngreme, obrigando algumas paradas e o uso constante das árvores ao redor como apoio para a subida. Porém, algumas não podem receber muito peso sobre si, e ainda mais por estarem em trechos um tanto íngremes, podem gerar fortes quedas. Algumas vezes surgem janelas que dão vista para a Serra do Ibitiraquire, em especial o Ferreiro, Arreio, Itapiroca, Camapuã e Tucum. Quando chega-se á uma grande rocha, surge a opção de subir um pouco mais adiante, ou contorna-la por um caminho á esquerda. Segui a princípio adiante, sendo necessária uma curta subida íngreme, mas logo vendo que o caminho fechava-se intensamente, embora existisse em um dos galhos uma marcação com fita amarela com cara de mais de 10 anos de idade. Com certeza ali já foi a rota principal, que entrou em desuso, visto que o caminho á esquerda funcionava melhor. Chega-se á um braço do cume, onde mais adiante avista-se o cume real, separado por um breve colo rapidamente percorrido. Pouco antes do cume há um alto degrau na trilha, quase sem nenhum apoio, mas logo em seguida chega-se ao topo onde a caixa de cume guarda o velho e preservado caderno, e é possível ver uma atípica visão da Serra dos Capivari - mais perto do que nunca, mas ainda separado por um longo vale, e a Serra do Ibitiraquire, onde os cumes restantes do dia nos aguardavam. A vista ao nordeste também é um destaque desta impopular montanha. Levemos 1:10h até as plaquinhas, e mais cerca de 1 hora até o pico, em bom ritmo. A média do Guaricana, em geral, deve ser entre 2 á 3 horas para ida.
Taurepã e Guaricana, visto da trilha durante a aproximação ao Guaricana
Plaquinha que identifica o local da entrada para a trilha do Guaricana. Á poucos metros dela, está a que identifica que para o Ferreiro deve-se seguir adiante
Marcação da Travessia Alpha Crucis, bastante apagada pelo tempo e pelo ambiente
Breve descida antes da subida final ao Guaricana
Serra dos Capivaris
Serra da Virgem Maria
Morros na região de Antonina. O agudo á esquerda é o Cunhaporanga
Ferreiro, Taipabuçu e Caratuva, vistos do Guaricana
Itapiroca, Tucum, Camapuã e Camacuã
Voltando até as plaquinhas, tomamos o caminho adiante indicando pela placa do Ferreiro, onde a caminhada passa á ser igual á aquela até as placas, mas com alguns atoleiros a mais. Chega-se á beira do ponto de passagem de fios de alta tensão, traçado evidente nos mapas de satélite, e que ali se identifica o caminho em direção ao Ferreiro, passando por baixo da ruidosa fiação, e o restante da Picada do Cristóvão á esquerda, local onde não há placas como anteriormente, mas que a ampla vista do Ferreiro deixa o caminho óbvio, ao menos em dias abertos. Algumas árvores caídas pouco adiante fechavam um pouco a trilha, mas que logo passa á ser bem evidente e marcada á seguir. Passa-se por uma pequena cachoeira, a melhor fonte de água de todo o trajeto. A trilha segue á direita dela, por um córrego de água um tanto liso, onde mais adiante as fitas reaparecem. Sobe-se por cerca de meia hora até chegar ás áreas mais descampadas, onde a trilha passa á ser por cima de solo rochoso, em linha reta até o cume. Há um falso cume, de onde enxerga-se outro, e após este, o verdadeiro cume, que a partir dali é rapidamente alcançado. Lá encontramos o único grupo de pessoas que vimos durante todo o dia, que estavam visitando o Ferreiro pela mesma rota que tomamos. O destaque da vista deste cume é evidentemente para a pirâmide do Ibitiraquire, o Ferraria, cuja subida cansava só de olhar.
Ferreiro visto durante a passagem pelas torres de energia
Taurepã, visto durante a subida ao cume do Ferreiro. Ao fundo, Serra da Bocaína
Taipabuçu, Caratuva e Itapiroca, vistos do cume do Ferreiro
Cume do Morro do Arreio, visto do Ferreiro
Após uma longa pausa para lanches e fotos, iniciamos a descida sentido Ferraria, que se inicia logo abaixo do cume, na direção dele. Até onde eu sei, esse percurso foi aberto para a execução da primeira travessia Alpha-Crucis, em 2012, e atualmente está bem consolidada, com constantes fitas e foi realizada sem nenhum problema de orientação. Um pouco após o início da descida, uma longa corda bastante recente auxiliava a descida do trecho mais íngreme e perigoso, cerca de 10~15 metros de uma parede de pedra quase sem apoios para os pés ou para as mãos. A corda também não possuía nós em boa parte dela, tornando necessário amarrar minimamente ela em uma das mãos até conseguir melhor apoio para cada descida. Chegando abaixo, a trilha continua sendo percorrida por um solo rochoso e bastante úmido, e embora não necessariamente liso, requer bastante cuidado. O final do vale é alcançado em bom tempo, e ali estão marcações das duas travessias Alpha-Crucis já realizadas. A subida do Ferraria é inicialmente coberta, mas logo passa á alternar com uma vegetação mais baixa e subidas contornando rochas, e assim acaba-se acompanhando o ganho de elevação em relação com o Ferreiro. Em certo ponto, olho para cima, e vejo não tão distante oque deveria ser um falso cume, mas ao que tudo indica, brilhava uma caixa de cume lá. Eu falei com meu colega, que eu me recusava a acreditar que já teríamos subido tanto. Mas logo adiante se tornou claro, e como o Seu Nério havia me dito na Torre Prata semanas antes, o Ferraria, para alguns já com alguma experiência, não mata tanto quanto dizem. Seguimos e logo chegamos na caixa de cume, visivelmente não tranquilamente, tanto que me joguei no chão ao chegar. Nosso outro colega demorou um pouco mais para chegar, ele que estava se queixando de não estar se sentindo tão bem como outras vezes, e com muita dor muscular e enjoo, dando sinais do que estava por vir. Mais algumas fotos e apreciação do lugar, e dali a vista em especial, além do Pico Paraná, era pro Saci, cuja silhueta e emblemático aspecto nunca ficou tão próximo, desde a primeira vez que o vi no Capivari Grande. Perto do cume há uma área com espaço para cerca de 4~5 barracas, e ao lado desse tomamos caminho para a descida sentido Taipabuçu.
Marcações da Alpha Crucis, localizadas no fundo do vale entre o Ferreiro e o Ferraria
Cume do Ferraria á vista
Ferreiro visto do cume do Ferraria
Pico Saci visto do Ferraria
Taipabuçu, próximo destino da travessia
A descida até o vale tornou evidente que a ida ao Ferraria via Taipa é mais difícil que pelo Ferreiro. Em questão de altimetria, evidentemente é, visto que o Ferreiro, por ser mais baixo que o Taipa, é um "obstáculo" mais fácil de ser transpassado, fora que a sua aproximação é mais leve em comparação com o Getúlio. Um lance de corda para descer um paredão de pedra bem íngreme, e mais abaixo é tudo sempre uma descida com cara de bem cansativa de subir. Ao final, ainda surge um breve trecho onde é necessário andar bem abaixado, quase se rastejando. A descida foi longa como deveria, e a subida veio para cobrar todo o desnível negativo em uma última subida nessa travessia. Há nesse trecho, alguns pontos de água que escorrem sobre pedras, mas que em tempos ainda mais secos podem fornecer bem pouca água. Chegamos no sub-cume do Taipa e aguardamos brevemente nosso colega, que chegou lá pior que no Ferraria. Para chegar no cume do Taipa, ainda é necessário descer este sub-cume, por um alto trecho de corda, outro que merece bastante cuidado. Após ele inicia-se uma breve subida que nos leva a caixa de cume, onde é hora de um último lanche com vista para o pôr do sol, onde nosso colega passa á ser medicado. Iniciamos á descida tentando aproveitar ao máximo o restante da luz do dia, até o ponto que já não é mais suficiente. Nossa intenção a princípio era aproveitar a existência de uma ligação do Taipa com o Caratuva, logo no início da descida, e fechar o circuito com 5 cumes, mas com a situação do nosso colega e o fim do dia, já não nos interessava tanto. Foi o mais prudente, ainda mais visto que a situação se agravaria. A descida do Taipa é tranquila, mas com muitos obstáculos á partir do ponto onde a trilha passa á ser coberta. São na maior parte raízes que obrigam constante uso de todo o corpo, onde também muitas rochas tornam a trilha um tanto repetitiva, ao mesmo tempo que de constante atenção. A trilha é marcada e evidente, mas em certos pontos aparecem algumas entradas para a esquerda e para a direita, que devem ser praticamente sempre ignoradas, seguindo o caminho para a base do Caratuva, onde ficam as plaquinhas. Em certo ponto nosso amigo não aguentou e vomitou a primeira das 5 vezes que viriam. Ele já havia encarado trilhas consideradas longas, como a Torre Prata e a Travessia dos 5 Capivaris, ambas na minha companhia, mas provavelmente pela soma de outros fatores, além da maior distância e desnível desta, seu corpo já não era capaz de destinar o mesmo fluxo sanguíneo para todos os órgãos, levando ao enjoo constante e ao vômito. Cada vez que ele vomitava, se sentia brevemente melhor, mas logo sentia-se tonto e precisava parar, vomitando logo ao ponto de ser puro suco gástrico. Isso prolongou nossa expectativa de finalizar a trilha de 12 para 14 horas, mas nada que tivéssemos o direito de reclamar, mas sim de apoiar nosso amigo até o final e chegar com a vitória. Chegamos na Fazenda Rio das Pedras com a lanchonete já fechada, frustrando nossa vontade de matar algumas lombrigas, e partimos para casa com mais um grande feito da temporada concluído.